.Thanatos

Estamos cozinhando no panelão de desgraça desde 2020, e talvez essa constante exposição tenha culminado nessa minha percepção, mas, para mim, o ano de 2022 foi marcado por morte. Morte de membros da família, morte de pessoas próximas, morte dos meus pets, morte de pessoas que admiro, morte de colegas de trabalho, morte de ícones que pareciam fazer parte da própria estrutura do mundo. E continuo entrando na internet e vendo vidas medidas em volume.

Eu, talvez por traços de personalidade mesmo, sempre fui uma pessoa um pouco obcecada pelas coisas que faço. Como se eu usasse meu corpo como um veículo de carne que tem como objetivo me permitir viver imerso na experiência de fazer, descobrir, aprender e consumir coisas. E ver toda essa morte acontecendo ao meu redor me traz de volta pra esse veículo e na história dele. E eu tenho praticamente zero.

Tenho pouquíssimos registros da minha existência, não tenho fotos da maior parte da minha vida, não tenho amigos de longa data, me mudei vezes o suficiente pra sempre me ver em um ambiente que não me é familiar e acompanhado de pessoas que precisam aprender quem eu sou e que eu também preciso aprender quem são. Até os projetos que passei obcecado fazendo ao longo da minha vida acabaram se perdendo para o tempo. Parte por medo, falta de cuidado, ou pela própria natureza da internet.

E agora, talvez derivado de toda essa onda de acontecimentos, me vem uma constante sensação de que eu também estou acabando. E que em breve, quando eu terminar, eu não vou ter nada pra mostrar. Eu não sei por que não ter nada pra mostrar me incomoda, mas é algo que eu estou aprendendo que é importante pra mim.

Eu também venho lentamente me afastando do ramo profissional de arte. Eu sei que eu falei no início de 2022 (e em outros momentos) que eu iria tirar o ano para parar de trabalhar com arte e focar em projetos pessoais, e ainda assim 2022 foi um dos anos que eu mais trabalhei. E quanto mais eu trabalho mais eu tenho certeza de que quero fazer essa transição. Creio que muito da minha insatisfação com o ato de trabalhar na indústria vem de assuntos descritos aqui, mas eu também estou sentindo essa transição como parte desse ciclo de morte.

Eu vivi e construí a maior parte da minha vida em cima de fazer arte, não é só parte de quem eu sou mas é o que todo mundo espera de mim. Me afastar de tudo me faz sentir muito um peixe fora da água, eu perco o contato com a comunidade, eu perco o contato com meus amigos, eu perco o contato com um plano de vida que eu conheço muito bem e me traz segurança. Me deixando sozinho, perdido e confuso, por mais que eu saiba que é a decisão que deve ser tomada.


Eu fiquei o ano inteiro decantando essa salada de sentimentos, foi mais um ano em que eu não estive em um espaço mental muito positivo. Mas pensar sobre tudo isso me fez ter uma relação nova com as coisas que quero fazer. Pensar nisso traz um propósito novo para querer fazer coisas. Reconhecer a morte, reconhecer que minha existência deixa um rastro, reconhecer que muito da minha vida são as coisas que eu faço, mas no fim a experiência de fazer coisas também faz parte da minha vida…

Eu sempre brinco que o único trabalho do artista é achar motivo pra desenhar. Acho que lá no fundo essa piada era sobre isso.


Agora com esse afastamento e uma visão mais transparente dessa dor, eu consigo ter uma melhor análise de quais são as atividades que ultimamente tem me dado um sentimento de propósito, como por exemplo dar aulas. Todo aquele tempo gasto fazendo desenhos que nem existem mais, ou trabalhando fazendo desenhos que eu nunca vou poder mostrar tem um nome: experiência. E por mais que os produtos não existam mais, a experiência existe. Dar aulas não só me ajuda a lembrar disso, mas me permite transformar toda essa experiência em algo palpável. Em uma “coisa”. Em uma prova. Interagir e ajudar os alunos também me faz sentir que estou fazendo algo bom para o mundo.

Quero tentar trazer esse sentimento para mais áreas. Encontrar mais formas de injetar minha experiência e meu passado pra fazer coisas que me trazem propósito. Gerar provas de que passei por aqui, registros de quem eu fui, como eu era, ajudar pessoas, e compartilhar sentimentos que fazem parte da jornada. Esse site horroroso em html é uma delas!

É um processo difícil e esquisito, principalmente porque só por você ter um sentimento não significa que você vai fazer uma música emocionante. Só porque eu to cheio de ideia não quer dizer que esse texto vai ser legal de ler. Hora de entrar em um novo ciclo de aprender o máximo que eu consigo sobre as disciplinas que me interessam, a fim de desenvolver as habilidades necessárias para conseguir compartilhar a minha visão do que é maneiro nesse mundão de deus.

Eu venho fazendo isso há muito tempo com desenho de forma quase que intuitiva, a busca dessa expressão é algo bastante interessante pra mim, mas acho que é hora de explorar e buscar todas as outras coisas que desenho não expressa. E agora que eu já passei por isso uma vez, eu sinto que eu tenho uma boa ideia de como aprender a fazer isso em novas disciplinas.

Quero usar 2023 para sair da bolha de desenho, me conectar com pessoas, colaborar com e fazer projetos que englobam várias disciplinas e expressam todo tipo de sentimentos, não apenas prazer estético. Quero colocar algo que eu acho maneiro no mundo, não só um .zip de .jpegs.


Mas é isso, queria dedicar esse post, desenho e texto em memória a todos que retornaram ao universo esse ano. É estranho viver num mundo que não é sustentado pelos pilares de suas existências, parece que tudo deveria colapsar mas entendo que agora é a nossa vez de segurar a barra. Já já iremos dançar com vocês também.

Feliz 2023